9 de outubro de 2014

«A nossa espiritualidade tem de ser sexuada»

Monsenhor Vítor Feytor Pinto, ordenado presbítero há 59 anos, esteve quase três décadas como coordenador nacional da Pastoral da Saúde, fala com abertura sobre a necessidade de integrar a sexualidade num projeto de vida. E sublinha não só a importância da família e da escola para orientar os jovens, mas também da Igreja na educação para a sexualidade: «A Igreja tem um papel fulcral, mas não é com “isto é pecado e aquilo não é pecado” – não é assim. É: “Como é que tu cultivas a tua dignidade humana?”– este é que é o ponto-chave.» Palavras que ficam a fazer eco.

Tem acompanhado muitos jovens casais em preparação para o casamento e famílias. Que dúvidas é que eles têm partilhado consigo sobre a sexualidade humana?
O problema da aprendizagem afetivo-sexual é fulcral nos jovens. Um jovem não pode limitar-se a fazer experiências. Tem de ter uma riqueza enorme de descobrir um valor fundamental para a sua vida que é precisamente o mistério da sexualidade humana. Para a maior parte das pessoas, a sexualidade consiste em quê? Na atividade sexual – e não é nada disso. O Papa João Paulo II, num documento notável que se chama Familiaris Consortio no n.º 37, define a sexualidade desta maneira: é o dinamismo integral da pessoa humana que a leva a realizar-se plenamente num projeto de vida. A maneira de viver a sexualidade no campo da genitalidade ou da afetividade é sempre dependente do projeto que tenho. Se tenho um projeto sacerdotal, eu vivo a minha sexualidade de determinada maneira; se sou casado, vivo a sexualidade doutra maneira; se estou a preparar-me para o casamento, vivo ainda a sexualidade doutra maneira. Os jovens perguntavam-me muito o que podiam e não podiam fazer numa perspetiva de poder ou não poder fazer, de pecado ou de graça. Tínhamos de ter uma visão completamente diferente disso…

Pegando nas dúvidas dos jovens, pergunto-lhe: o que os jovens podem e não podem fazer?
Têm de descobrir o respeito pela própria dignidade e a dignidade do outro que os levará a utilizar todo o seu corpo na construção de um projeto. Eu tenho a minha mão que posso usar bem ou mal. Posso fazer uma festa a uma criança, mas posso dar uma bofetada ou um murro – é o uso bom ou mau das minhas mãos. Então, em vez de perguntar «O que posso fazer e o que não posso?», questionar antes: «Como é que eu com dignidade vou utilizar o meu corpo mesmo ao nível da genitalidade? De que maneira é que com dignidade vou utilizar o corpo do outro? Como é que vou criar a relação? Como é que estabeleço os mecanismos da comunicação? Que respeito faço pela progressividade do encontro que me pode levar a um compromisso recíproco?»


O que a Igreja está a fazer no sentido de trabalhar a sexualidade? Ainda tem muitos passos a dar?
Ainda tem muitíssimos passos a dar. A primeira coisa é perder o medo de falar sobre este problema, porque é o valor mais belo que o Senhor nos deu, a par da inteligência. É com a nossa inteligência e a nossa liberdade que vamos orientar todos os nossos comportamentos também na utilização do corpo. Portanto, temos de aprofundar o tema. Temos tido medo de falar destes problemas. Temos de redescobrir o conceito de sexualidade. A partir do conceito, perceber que há valores que tenho sempre de respeitar e de promover em mim e no outro – e nunca posso profanar a nossa relação, porque a nossa relação é sempre divina. A nossa relação entre humanos é sempre um grito de amor que Deus colocou nos nossos corações. Eu tenho de saber viver com este elemento e tenho de saber trabalhá-lo. Tenho de ajudar os mais novos e os mais velhos a sentirem a importância do seu corpo e a sua capacidade de amar para utilizarem estes valores maravilhosos em projetos de fecundidade: fecundidade física, psicológica, social, cultural… A sexualidade não se limita ao mistério do nosso corpo – a sexualidade envolve toda a nossa vida. É todo o nosso dinamismo de comunicação e relação.

Muitas vezes pensamos que questionar um padre sobre esta matéria não tem sentido, uma vez que não está vocacionado para falar sobre o tema. E isto provoca alguma inquietação. Tem sentido isso por parte de alguns casais: mas por que carga de água é que vou perguntar ao senhor padre sobre esta situação?
Muitos padres não têm preparação para isso. Ponto final parágrafo. É por isso que nestas áreas como noutras tem de haver sacerdotes que se especializam para poderem orientar bem aqueles que os procuram. Mas atenção: nenhum padre tem direito de dizer faz isto ou faz aquilo ou não faças isto nem aquilo. A orientação de padre – próxima da intervenção psicológica enriquecida com a matriz da relação com Deus – é dizer: «Tens este campo, tens esta abertura, procura descobrir o caminho que é o teu ou o sentido dos valores que são essenciais à tua relação com o outro.» Tantas e tantas vezes, nós, sacerdotes, dizemos não podes fazer isto, não podes fazer aquilo e até há cientificamente razões para o fazer. O científico está muitas vezes colado ao mistério da caridade. E a prioridade absoluta nos cristãos é o amor. Há todo aqui um trabalho que nos obriga a iluminar os casais, as pessoas que têm problemas, para que saibam por si resolver os seus problemas. Esta história de eu substituir o outro na solução do problema é um erro terrível. Nós temos de dizer: «O caminho está aberto, tem esta alternativa e esta. Repare nos valores daqui, repare nos contravalores dali.» A própria pessoa é que decide.

É importante referir a maternidade e paternidade responsáveis. Com os métodos naturais defendidos pela Igreja isso é, por si só, válido?
Nós temos 18 ou 20 métodos, não posso dizer só são validos os naturais, até porque eu discordo muito deste título “naturais”.

Qual é o título que defende?
Gosto muito de dizer os métodos de auto-observação. Os métodos de auto-observação permitem ao homem e à mulher conhecerem toda a sua riqueza fisiológica, e a partir dela orientar o quadro da sua fecundidade. Portanto, os métodos de auto-observação para mim são muito melhores do que métodos naturais.
Nós temos 18 ou 20 métodos; temos o dever de, no caso de uma orientação de casais, lhes dar a conhecer tudo. Dizer de cada um deles os valores e contravalores. Quando chegamos também aos de auto-observação dizer os valores e contravalores e pedir ao casal que aprofunde e depois fazer escolhas válidas e não escolhas que possam, de alguma maneira, tocar a sua dignidade.

Poderá haver alguma abertura da Igreja para a utilização da pílula e do preservativo entre os casais?
Eu não gosto nada de aprofundar o problema assim. Lembro-me sempre de uma história muito bonita de um professor de Ética notável que, quando se celebrou os 40 anos da Humanae Vitae, a certa altura disse assim: quando um documento oficial não é respeitado na vida da grande maioria das pessoas para quem ele é dirigido, provavelmente o que está errado não é o comportamento das pessoas, é a própria letra do documento. É muito interessante isto ter sido dito assim. De facto, eu tenho a sensação de que a rigidez de dizer “só os métodos naturais” – com esta afirmação tão dura – pode dar origem a que os casais não se preocupem mais com o fazer o estudo de todos os processos para ver qual é aquele que se adapta melhor ao seu estado de vida, à realidade que está a viver, e aos valores cristãos que marcam a sua vida. Aí, eu tenho de citar o Papa João Paulo II, no artigo 3.º, dos Direitos da Família diz assim: Pertence ao casal que tem direito ao amor definir o número de filhos e o intervalo entre cada um deles, tendo em consideração as condições da sociedade, as condições da família, a saúde, o equilíbrio psicológico do casal e a opinião dos filhos já nascidos e, a partir disso, então faz a opção no quadro dos valores éticos fundamentais, excluindo, no entanto, o aborto, a contraceção e a esterilização. Isto é muito claro, a única coisa que é discutível nesta expressão é o que é a contraceção. E esta é a grande discussão entre os técnicos de saúde.

E o que é a contraceção, do seu ponto de vista?
Do meu ponto de vista, contraceção é mesmo contrariar por antecipação a fecundidade. Mas atenção: pode haver muitos momentos em que isto seja obrigatório para garantir a saúde da mulher. Portanto, não é apenas a palavra contraceção que podemos utilizar. Temos de verificá-la e ver se cada método que está a ser recomendado clinicamente pela medicina é contracetivo ou é, ao contrário, terapêutico. É um problema muito interessante…

Daqui já se deduzem alguns caminhos abertos…
Penso que sim. Penso que nisto a Igreja está suficientemente aberta. Julgo que este sínodo dos bispos vai ser muito importante até nestes aspetos. É engraçado que eu acompanhei à distância em 1968 a publicação da Humanae Vitae. E houve até um grande amigo meu, morreu com 94 anos, Abbé Caffarel, o processo de beatificação dele está em curso, e ele sugeriu à Santa Sé que uma equipa de casais das equipas de Nossa Senhora se pronunciasse sobre este tema. Curiosamente pronunciaram-se, mas depois a sua opinião não teve o acolhimento que era necessário ter tido. Portanto, era um tema que estava ainda muito em dificuldade em ser discutido. Estamos à distância de quase 50 anos. E, portanto, estamos no princípio desta abertura. Eu julgo que agora com os sínodos dos bispos, quer o de 2014 quer o de 2015, também neste campo vamos ter alguma abertura.

A quem compete a educação para a sexualidade?
A primeira responsável pela educação da sexualidade na criança é a família. A família não pode de, forma nenhuma, cultivar a permissividade pelo silêncio, a ver o que é que acontece. A família pode ir abrindo a porta, com conversas entre casais ou até com algum técnico que a possa ajudar. Mas depois tem de haver complementaridade. Na escola há o grande mundo da relação. Muitos jovens têm as primeiras experiências físicas na escola com um silêncio total do corpo dos professores. Por outro lado, a informação que é dada é só uma informação meramente biológica – sem mais nada –, como se dá também para a procriação dos animais ou de outra espécie qualquer. Aqui há um défice muito profundo. Há um problema, de facto, de apoiar a educação da sexualidade, que tem sempre a dupla componente: genitalidade e afetividade. A simples regulação dos mecanismos não é educação para a sexualidade. Isso é uma informação mecânica que depois os jovens usam a seu bel-prazer, conforme as reações que vão tendo. Depois, o terceiro elemento é a Igreja. Na nossa catequese no Campo Grande fazemos educação da sexualidade. A Igreja tem um papel fulcral, mas não é com «isto é pecado e aquilo não é pecado» – não é assim. É: «Como é que tu cultivas a tua dignidade humana?» – este é que é o ponto-chave.

Entrevista: Sílvia Júlio
Fotos: Ricardo Perna e Paulo Paiva


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